Tenho certa dificuldade com alguns discursos porque não me parece lógico falar em nome de uma sociedade inteira, nem a favor, nem contra. Ao mesmo tempo que acho que temos que ter nossas liberdades de escolha para fazermos quase tudo que bem entendemos, vejo que algumas escolhas estão matando, afetando, destruindo demais para serem preservadas. E entre uma e outra opção, ainda existem mais opções.
Na busca do equilíbrio entre o livre-arbítrio e a parcimônia entendo que surgiu uma guerra inútil entre defensores da esquerda e da direita. Nunca vi ninguém ganhar no grito.
Esta guerra cruzou o mundo e hoje as pessoas, antes de se apresentarem já indicam suas preferências. E se você pensa o contrário ou ainda não pensou a respeito, coitado de você, ignorante. Não sabe de nada.
Quando um moço, nascido e criado num país tropical que é o Brasil, encontra o fim da sua vida porque não conseguiu se proteger do frio, sinceramente, me sinto imensamente triste e também culpada.
E eu sei que você vai dizer que a culpa não é minha. Que eu não tenho nada com isso. Que a culpa é do governo, a culpa é do sistema, a culpa é da ganância, a culpa dos corruptos. Sim. Isso também. Mas quem alimenta tudo isso somos nós. E mesmo com nossas briguinhas sobre quem é mais corrupto, o pessoal da esquerda ou da direita, a gente continua assistindo, numa posição passiva, a imoralidade matar nossos compatriotas de frio, de fome, de falta de medicamentos, de falta de assistência, de atendimento médico, de falta de segurança. E não, o discurso pela segurança na cidade não deveria estar separado do discurso pelo prato de comida, pelo mínimo de dignidade para todos os seres humanos. Tudo faz parte de um grande bolo que a gente precisa ajudar a manter de forma colaborativa e coletiva pra encontrarmos aquilo que chama qualidade de vida. Ou pelo menos consciência tranquila.
O “como fazê-lo” pode parecer de esquerda ou de direita dependendo do seu ponto de vista. Mas acredite : Ninguém quer sustentar vagabundo. E isso vale para os dois pólos. Não queremos que um homem que não dê exemplo pise ou humilhe seus funcionários, não queremos que um político que não trabalhe tire vantagens de merenda infantil ou remédios para câncer (tem maior vagabundagem que esta ?). Não queremos que uma pessoa que passe o dia bebendo receba mais dinheiro para continuar gastando com bebida. Não nos interessa também que um casal tenha filhos apenas para receber dinheiro. Assim como não é nada razoável que uma criança abandone a escola para pedir esmola na rua. Ninguém, em pleno funcionamento da razão iria querer um cenário desses. Não se trata de discurso ideológico. É no mínimo prático tentar pensar as soluções do pouco ao muito e de maneira mais ampla.
Por exemplo. Dentro de uma casa com crianças. Os pais sabem que vez ou outra os filhos irão brigar. Sabem que vez ou outra uma das crianças vai recusar a comida, vai se recusar a arrumar o quarto, vai se recusar a fazer o dever de casa. Tanto sabem disso, que procuram informações sobre como atuar nesses casos. Seriam péssimos pais se imaginassem uma vida com filhos apenas perfeitinhos, sempre obedientes, sempre educadinhos. Isso não existe e tem que estar previsto no tempo da família, dedicar uma atenção para esses problemas, para que eles não aconteçam com tanta frequência, e quando aconteçam, que sejam resolvidos de forma inteligente e rápida. Eles não vão deixar os filhos para fora de casa se um dia eles saírem e esquecerem as chaves. Não. Eles têm suas reservas (de conhecimento e paciência) para usarem nessas horas, quando as coisas complicam.
O mesmo entendo que vale para uma cidade. Já que escolhemos viver numa cidade, unidos pelos nossos condomínios, quebra-molas e rotatórias, estamos todos na mesma selva. E o mesmo dinheiro de impostos que vai para trocar a luz do poste para que a gente volte pra casa em segurança, também pode ser aplicado para que algumas pessoas tenham informação e opção para se refugiarem em dias de frio. « Ah, mas eu não sou obrigado a pagar apartamento para quem não quer trabalhar », dizem alguns (respira fundo!). E não, não se trata de apartamento, não se trata de luxo. Se trata de assistência para aquela parcela da sociedade que, diferentemente da gente, ainda não se integrou, ou apenas, como no caso das crianças, que está vivendo uma fase mais complicada. Talvez tenha alguém repetindo “leva ele pra dormir na sua casa”. Embora tenha gente que faça isso mesmo, essa alternativa também não precisaria ser usada se a cidade se organizasse para acolher essas pessoas na hora da dificuldade.
Essa realidade, que existe em quase todos os países do mundo, não pode ser negligenciada. E tenho certeza que muita gente que chegou até aqui no texto sabe disso. Talvez esteja falando para as paredes. Mas como nunca tinha comentado esse assunto antes, e depois das várias notícias tristes desta semana sobre morte de pessoas por puro frio nas ruas do Brasil, pensei… Por que não falar ? Por que esperar um especialista se debruçar sobre a questão enquanto tem tanta gente sofrendo e outro monte de gente sem entender esse sofrimento.
E sabe, existem muitos abrigos nas cidades. As pessoas poderiam recorrer a esses abrigos existentes. Talvez o problema não seja nem esse (não tenho os dados), mas a falta de informação, e de uma assistência mais humana mesmo. Talvez a própria falta de segurança esteja impedindo os agentes colaboradores de chegarem até quem precisa. É tudo tão emaranhado pra resolver que a gente tem que ir desfazendo os nós por nós mesmos. E de um jeito um pouco mais ligeiro. Que bom que o universo dos aplicativos e compartilhamentos também serve a ajudar. Confio que isso poderia colaborar nesta hora.
Eu peço desculpas, moço, que você sentiu também o frio da nossa desatenção.