Rádio peão

Um dia ela entrou na nossa sala do escritório, fechou a porta e disparou a chorar. “Mas o que foi?”, perguntamos. E então ela desabafou. Havia sido contratada pelo escritório em razão de seu outro curso (de informática) para fazer o trabalho relacionado a isso. No entanto, em razão do enorme crescimento do escritório, conseguindo novos e grandes clientes, ela, que era recém-formada em Direito, fora reencaminhada para o serviço de advocacia contenciosa.

O problema nem era esse. Ela soluçava e falava. O problema é que o volume de serviço era incompatível com o tempo de trabalho e com seu conhecimento. E, para piorar, a chefe direta dela, ao invés de ajudar, só ofendia os advogados daquela ala. Confirmamos se a porta estava fechada.

Ela contou que trabalhava 14h por dia e ainda levava trabalho pro fim de semana. Contou que a chefe mentia para os clientes. Dizia que estava tudo bem, que tinha gente suficiente para fazer o trabalho, quando na verdade, só tinha ela (recebendo R$1.300 por mês) e mais dois outros advogados para milhares de ações. A chefe, ficava por conta dos prazos. Mas só fazia gritar.

Não soubemos muito bem o que recomendar naquela hora. Para uma pessoa que precisa do salário (mesmo que baixo), é difícil falar simplesmente “se não é justo, peça demissão”. A gente também estava mais ou menos na mesma lama, com a excessão de que nosso chefe era mais gente boa. Recomendamos que ela se preparasse para adquirir mais agilidade nas peças que tinha dificuldades. Nossa colega mais experiente ofereceu todo tipo de ajuda intelectual, mesmo que a gente não tivesse muito tempo para isso.

Ela enxugou as lágrimas e saiu da sala.

Durante meses vimos aquela advogada passeando com os livros da biblioteca do escritório debaixo do braço. Vimos ela chegar cedo e sair tarde. Vimos ela ser ofendida pela chefe e ir para as audiências respirando fundo. Ela trabalhava muito. E era uma guerreira.

Começamos a comentar como ela era esforçada. E também como ela tinha melhorado em seu trabalho. Era nítida sua evolução.

Em outro momento de rádio-peão, ela comentava que estava estudando casos, se esforçando ao máximo e buscando outras opiniões para fazer um trabalho melhor.

Ela já tinha passado por um outro teste na vida. Era casada e perdeu seu marido ainda muito jovem. Diz que ele morreu de tão gordo que era. Ela, naquela época também obesa, começou a se cuidar. Se cuidou tanto, que hoje ninguém diz que ela teve um passado de sobre-peso.

Um belo dia aquela mulher foi mandada embora (sem direito a nada como é comum nos escritórios). Na nossa concepção de rádio-peão, a chefe dela não aguentou ver alguém de tanta garra, de fala mansa e punho firme. Ser bom é um perigo quando se trabalha para gente ruim.

Uma semana depois, eu a encontrei numa lanchonete, e ela já estava de emprego novo. Estava feliz! E tranquila. Antes de sair, havia desabafado tudo sobre a chefinha para a chefona. A rádio-peão nunca me disse se daquilo surtiu algum efeito.

Hoje, ao me lembrar dessa história, me ocorreu que ela é mais uma brasileira que tem a cara do Brasil que a gente quer.

#changeBrazil

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